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20 de junho de 2011

Museus: lugares do cotidiano...

Museu é lugar que guarda tesouros... mas seriam os tesouros somente aquelas coisas chiques?

Foi-se o tempo em que pensávamos os museus exclusivamente como espaços de guarda de objetos de grande relevância histórica ou financeira. Fardas, flâmulas e brasões; manuscritos, livros raros e fotografias de época; móveis aveludados, lustres de cristal e jóias; esculturas de mármore e quadros a óleo emoldurados por pesadas peças rocambolescas douradas – enfim! Um mundo sem fim de objetos inatingíveis povoou (ou ainda povoa?) nosso imaginário museal (e também nossa “realidade museal”, dependendo de que museu visitamos...). Verdade é que muitos não se sentem autorizados a adentrar os museus quando associados ainda a espaços sagrados a serem reverenciados incontestavelmente por todos, e usufruídos parcimoniosamente por poucos.

Mas não é mais esse conceito de museu que os teóricos defendem; não é mais esse museu que se prega nas políticas museais contemporâneas, incluindo aqui a brasileira; não é mais essa a concepção de museu que rege tantas ações educativas, tantas exposições inclusivas, tantos projetos integrados e multidisciplinares, tantas experiências virtuais etc. – embora seja ainda o tipo de museu que comumente ainda encontramos aqui e ali...

De todo modo, a nova museologia nos traz uma espécie de esgarçamento na camada conceitual, tornando os museus espaços mais porosos, permeáveis à troca, em interação permanente com seu entorno. A partir de uma tessitura conjunta com a sociologia, a antropologia, a pedagogia, a história e tantas outras áreas do saber, a museologia vem se configurando como campo fértil, dinâmico e novo que entra em confronto direto com a perspectiva de bolor e imobilidade a ela associados anteriormente (e ainda hoje, por parte da população). O maior desafio que enfrentam hoje os museus é exatamente fazer transbordar essas “novas” (a cada dia que passa, menos “novas”...) ideias e conceitos para além dos livros, palestras e textos, de forma a fazê-los refletir diretamente na prática: de modo a fazer com que o público sinta a diferença; perceba que o museu é hoje um espaço que lhe acolhe, que o provoca a refletir, que o desacomoda de suas passividades e verdades instituídas e o questiona. Faz-se necessário que o público se sinta acolhido; veja o museu e veja-se no museu; sinta-se autorizado, pertencente; identificado; encantado.

E na medida em que essa reversão do empoderamento vai se configurando, cada mulher, homem, menino ou menina que entra num museu pode se perceber parte integrante da história, da memória coletiva; cada um pode se sentir co-autor(a), pois é alçado à condição de produtor(a) de sentidos, é convocado(a)/convidado(a) a dar significação à tudo que é visto/vivido no museu – esse é o objetivo maior desse movimento contemporâneo de democratização de acesso aos museus; essa é a essência das atuais políticas de museus.

E nesse âmbito, os acervos também mudam. Não que não existissem antes acervos diferentes daqueles supracitados, mas hoje os acervos outros ganham uma visibilidade diferenciada. Tomo como exemplo o Ecomuseu Dr. Agobar Fagundes, na região rural de Garcia, em Nova Rússia, Blumenau/SC. Será que era antes fácil encontrar uma máquina de costura simples, velha, como parte de um acervo museal? Mas o que essa máquina significa para aquela mulher que adentra aquele museu e exclama ser aquela máquina preta igualzinha à que sua mãe usava quando ela era jovem? Ou mesmo a outra senhora que não se contenta em olhar, mas pega nas mãos o ferro pesado, e ainda compara com o que usava na roça quando era novinha, dizendo que o dela era mais pesado, repetindo no ar os movimentos fortes que fazia para engomar roupas com um ferro em brasa que, segundo ela conta, pesava mais de 5kg... Homens comentam do manejo mais difícil de outrora. Outros lembram românticos momentos de seus avós dançando ao som dos gramofones.

As memórias deflagradas pela relação com esses simples objetos são inúmeras – tristes, alegres, duras. Objetos antes rejeitados por seu desgaste de tempo, são ressignificados pela musealização que sofrem e pela oportunidade de confronto diferenciado que oportunizam ao visitante. Algumas tipologias de museu, mais do que outras, têm seu foco nessas histórias “comuns”, nesse passado cotidiano, nessa trama de vidas singulares e, ao mesmo tempo, coletivas. Os ecomuseus são museus que dão particular atenção à sua comunidade circunvizinha. Se hoje temos a clareza de que os museus só devem existir enquanto forem importantes para uma dada comunidade, mais ainda os ecomuseus, pois se baseiam na concepção de ecologia contemporânea que busca problematizar o homem em suas relações interpessoais, em suas perspectivas de intervenção junto à fauna e à flora, em sua busca de sustentabilidade planetária.

E desse modo, assim como os objetos da cultura material, a cultura imaterial também é amplamente valorizada nos ecomuseus. Para além dos vestígios da memória: isso serve para que? é o título do projeto desenvolvido no Ecomuseu Dr. Agobar Fagundes que trata exatamente da recolha e problematização dos depoimentos das pessoas quando em contato com o acervo de cultura material do museu. Cuca e poesia: um gosto que veio da Alemanha é outro dos projetos que esse Ecomuseu desenvolve junto à comunidade local a fim de resgatar, preservar e difundir a dimensão gastronômica daquela cultura de imigração alemã – um momento de trocas de receitas e degustações envoltas e aquecidas pelas conversas e “causos” das senhoras do entorno.

E ainda, a fauna e a flora também fazem parte do acervo dos ecomuseus! Cadastrar e pesquisar a fauna e a flora locais são desafios prementes que dependem de verba e requerem pessoal especializado. O Ecomuseu Dr. Agobar Fagundes já fez, dentre outras iniciativas, parceria para realizar o Projeto Mata Atlântica; e está em processo de musealização de suas trilhas ecológicas.

E retomo a pergunta do título: seriam os tesouros museológicos somente aquelas coisas chiques? Certamente que não! Que tal pensarmos que esses tantos exemplos trazidos hoje são como ondas de rádio, ou como as ondas do mar que reverberam em nós por tanto tempo, possibilitando-nos verdadeiras viagens na memória ou na imaginação; possibilitando-nos experiências ímpares, prenhes de afeto?! E não seria isso o verdadeiro tesouro?!

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa, tudo sempre passará
A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito
Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo
Não adianta fugir
Nem mentir pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro, sempre
Como uma onda no mar...

Música de Lulu Santos e Nelson Motta (Como uma onda – zen surfismo)

Texto de Maria Isabel Leite,
Adaptado de http://repensandomuseus.blogspot.com/2011/06/museu-e-lugar-que-guarda-tesouros-mas.html

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